Francis Collins e a ‘lógica do crioulo doido’ na revista VEJA: a Operação ‘Cavalo de Tróia’ em ação. Parte 2 de 3

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Gabriela Carelli menciona corretamente que Collins pertence a uma estirpe rara de cientistas comprometidos com a investigação do mundo natural sem o impedimento da profissão da fé religiosa. Desde quando acreditar ou não em Deus é condição sine qua non para ser um bom cientista? O que qualifica um bom cientista é seguir as evidências, não importa aonde elas forem dar. Ser ateu ou teísta é um apêndice insignificante à prática da ciência normal.

A reação de Collins às críticas de seus colegas ateus é compreensível. Isso também acontece amiúde na Nomenklatura científica em Pindorama. O que Collins relata no seu livro The Language of God (A Linguagem de Deus) é a sua experiência subjetiva religiosa cristã. Collins, ex-ateu se revela um cristão heterodoxo – está mais para deísta do que teísta. Ao narrar as suas dificuldades que enfrentou no meio acadêmico ao revelar sua fé, é o que tenho denunciado aqui em relação ao que acontece com alunos e professores em nossas universidades públicas e privadas: inquisição sem fogueiras, ‘patrulhamento ideológico’, e às vezes até a execração pública pelos rotweillers ateus de Darwin.

Por que eu bato aqui nessa turma sem dó nem piedade? É porque eu fui ateu e sei do que estou falando. Os ateus pós-modernos são intransigentes e fundamentalistas. Bato neles porque não admitem outros discursos. Seja na Nomenklatura científica ou na Grande Mídia. Bato neles para a promoção de se respirar a liberdade nos debates de idéias em nossos campi e na mídia. Eles é que são pessoas execráveis. Não tenho medo dessa ‘raça superior’.

Ao afirmar que as sociedades precisam tanto da ciência como da religião porque elas não são incompatíveis, mas complementares, Collins cai no princípio NOMA proposto por Stephen Jay Gould de que não deveria haver conflito entre a ciência e a religião:

“porque cada área tem um magistério legítimo, ou domínio de ensino com autoridade —e esses magistérios não se sobrepõem (o princípio que eu quero designar de NOMA, ou ‘magistérios não sobrepostos’). A rede da ciência cobre o universo empírico... A rede da religião se estende sobre as questões de significado e valor moral”. [1]

Traduzido em miúdos: o mundo da realidade objetiva pertence à ciência enquanto que a religião fica confinada à área dos sentimentos subjetivos e da imaginação. A NOMA de Gould é um convite para os teístas se renderem definitivamente —somente a ciência define a realidade. Ponto final.

Quando Collins afirma que a ciência e a religião são complementares, ele demonstra que já se rendeu à NOMA de Gould: a ciência e a religião são duas formas de verdade diferentes, separadas, mas complementares. Seriam iguais? A concepção religiosa cristã que Collins diz ser persuadido afirma: “No princípio Deus criou os céus e a Terra” [2] Gould persuadido pelas teses darwinistas escreveu: “A biologia tirou o nosso status de modelos criados à imagem de Deus”. [3]

Onde está a verdade? A NOMA de Gould é ilógica, pois a evolução não é incompatível com a religião, desde que esta religião seja a evolução.

A entrevista segue com Collins descrevendo sua conversão de ateísmo insolente ao cristianismo, e o que fez mudar suas convicções:

“Houve um período em minha vida em que era conveniente não acreditar em Deus. Eu era jovem, e a física, a química e a matemática pareciam ter todas as respostas para os mistérios da vida. Reduzir tudo a equações era uma forma de exercer total controle sobre meu mundo. Percebi que a ciência não substitui a religião quando ingressei na faculdade de medicina. Vi pessoas sofrendo de males terríveis. Uma delas, depois de me contar sobre sua fé e como conseguia forças para lutar contra a doença, perguntou-me em que eu acreditava. Disse a ela que não acreditava em nada. Pareceu-me uma resposta vaga, uma frase feita de um cientista ingênuo que se achava capaz de tirar conclusões sobre um assunto tão profundo e negar a evidência de que existe algo maior do que equações. Eu tinha 27 anos. Não passava de um rapaz insolente. Estava negando a possibilidade de haver algo capaz de explicar questões para as quais nunca encontramos respostas, mas que movem o mundo e fazem as pessoas superar desafios”.

As questões para as quais Collins não encontrava respostas eram questões filosóficas que transcendem a ciência, que fazem parte da existência humana. Ele considera a visão dos cientistas ateus como uma visão empobrecida sobre perguntas que todos os humanos fazem diariamente: “O que acontece depois da morte?” ou “Qual é o motivo de eu estar aqui?”.

Diferentemente de Dawkins que recentemente assinou uma petição pedindo a proibição do ensino de religião aos menores de 16 anos pelos pais [depois voltou atrás devido à pressão da opinião pública], Collins afirma que não é certo negar aos seres humanos o direito de acreditar na cosmovisão das concepções religiosas, que esse lado filosófico da fé é uma das facetas mais importantes da religião, e que a busca por Deus sempre esteve presente na história e foi necessária para o progresso.

Ele lembrou ainda que as civilizações que tentaram recentemente suprimir a fé e justificar a vida exclusivamente por meio da ciência (a União Soviética de Stalin e a China de Mão) falharam. Para Collins, nós precisamos da ciência para entender o mundo e usar esse conhecimento para melhorar as condições humanas, mas a ciência deve permanecer em silêncio nos assuntos espirituais.

Destaco aqui a pergunta inteligente de Gabriela Carelli e a resposta de Francis Collins:

Veja – A maioria dos cientistas argumenta que a crença em Deus é irracional e incompatível com as descobertas científicas. O zoólogo Richard Dawkins, com quem o senhor trava um embate filosófico sobre o tema, diz que a religião é a válvula de escape do homem, o vírus da mente. Como o senhor responde a isso?

Collins – Essa perspectiva de Dawkins é cheia de presunção. Eu acredito que o ateísmo é a mais irracional das escolhas. Os cientistas ateus, que acreditam apenas na teoria da evolução e negam todo o resto, sofrem de excesso de confiança. Na visão desses cientistas, hoje adquirimos tanta sabedoria a respeito da evolução e de como a vida se formou que simplesmente não precisamos mais de Deus. O que deve ficar claro é que as sociedades necessitam tanto da religião como da ciência. Elas não são incompatíveis, mas sim complementares. A ciência investiga o mundo natural. Deus pertence a outra esfera. Deus está fora do mundo natural. Usar as ferramentas da ciência para discutir religião é uma atitude imprópria e equivocada. No ano passado foram lançados vários livros de cientistas renomados, como Dawkins, Daniel Dennett e Sam Harris, que atacam a religião sem nenhum propósito. É uma ofensa àqueles que têm fé e respeitam a ciência. Em vez de blasfemarem, esses cientistas deveriam trabalhar para elucidar os mistérios que ainda existem. É o que nos cabe”.

>>> Somente um comentário: Por todas as medidas científicas objetivas, Collins é um cientista muito melhor do que alguém como Daniel Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris. Mas, será que Sam Harris, um judeu ateu, é de fato um cientista renomado???
Vide a biografia de Sam Harris pelo próprio http://www.samharris.org/site/about: Ele é formado em Filosofia pela Stanford University, e estudou as tradições religiosas orientais e ocidentais, bem como uma variedade de disciplinas de contemplação por vinte anos. O sr. Harris está completando um doutorado em neurociência.

Sam Harris ainda estuda ‘religião’ e ciência:
http://www.huffingtonpost.com/sam-harris/a-contemplative-science_b_15024.html

Mas logo em seguida, a brilhante jornalista da VEJA ‘pisa na bola’ da História ao fazer a seguinte pergunta:

Veja – O senhor afirma que as sociedades precisam da religião, mas como justificar as barbaridades cometidas em nome de Deus através da história?

Collins – Apesar de tudo o que já aconteceu, coisas maravilhosas foram feitas em nome da religião. Pense em Madre Teresa de Calcutá ou em William Wilberforce, o cristão inglês que passou a vida lutando contra a escravatura. O problema é que a água pura da fé religiosa circula nas veias defeituosas e enferrujadas dos seres humanos, o que às vezes a torna turva. Isso não significa que os princípios estejam errados, apenas que determinadas pessoas usam esses princípios de forma inadequada para justificar suas ações. A religião é um veículo da fé – essa, sim, imprescindível para a humanidade.

>>> Gabriela, talvez você desconheça a existência do livro O Livro Negro do Comunismo que relata o genocídio praticado pelos ateus: mais de 100 milhões de pessoas foram mortas por uma ideologia que nega a existência de Deus. Além disso, que tal a VEJA abordar isso numa reportagem histórica especial? Afinal de contas, os ateus mataram muito mais pessoas do que todas as guerras religiosamente motivadas. Eu se fosse ateu, enfiava a viola no saco, e não argumentava mais assim.

Veja – O senhor diz que a ciência e a religião convergem, mas devem ser tratadas separadamente. Como vê o movimento do "design inteligente", em que cientistas usam a religião para explicar fatos da natureza que permanecem um mistério para a ciência?

Collins – Essa abordagem é um grande erro. Os cientistas não podem cair na armadilha a que chamo de "lacuna divina". Lamento que o movimento do design inteligente tenha caído nessa cilada ao usar o argumento de que a evolução não explica estruturas tão complicadas como as células ou o olho humano. É dever de todos os cientistas, inclusive dos que têm fé, tentar encontrar explicações racionais para tudo o que existe. Todos os sistemas complexos citados pelo design inteligente – o mais citado é o "bacterial flagellum", um pequeno motor externo que permite à bactéria se mover nos líquidos – são um conjunto de trinta proteínas. Podemos juntar artificialmente essas trinta proteínas, que nada vai acontecer. Isso porque esses mecanismos se formaram gradualmente através do recrutamento de outros componentes. No curso de longos períodos de tempo, as máquinas moleculares se desenvolveram por meio do processo que Darwin vislumbrou, ou seja, a evolução.

>>> Esta parte nós já respondemos no blog “A revista VEJA, Gabriele Carelli e o Ctrl + Alt + Design Inteligente = religião”
http://pos-darwinista.blogspot.com/2007/01/revista-veja-gabriele-carelli-e-o-cntrl.html

Como se vê, Collins não é cristão ortodoxo, nem tampouco darwinista ortodoxo. Sua mais recente intervenção sobre essa questão de ‘complementaridade’ pode ser lida na revista Christianity Today: ele sugere o meio termo.

http://www.christianitytoday.com/ct/2007/january/32.62.html
Eu não queria estar na pele do Collins — ele vai levar chumbo de tudo quanto é lado. Mas, quem está na chuva é para se queimar (Vicente Matheus, saudoso presidente do meu Corinthians!).

NOTAS:

[1] “because each subject has a legitimate magisterium, or domain of teaching authority —and these magisteria do not overlap (the principle that I would like to designate NOMA, or ‘nonoverlapping magisteria’). The net of science covers the empirical universe... The net of religion extends over questions of moral meaning and value”. GOULD, Stephen Jay, “Nonoverlapping Magisteria”, in Natural History 106 (March 1997): 16-22. Estava disponível online em: http://www.stephenjaygould.or/library/gould_noma.html

[2] Gênesis 1.1

[3] “Biology took away our status as paragons created in the image of God”, in Ever Since Darwin, Nova York, Simons & Schuster, 1979, pp. 216-17.